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Exposição “Salazar 40 anos? – Desenhos de Cláudio Torres

Exposição “Salazar 40 anos? – Desenhos de Cláudio Torres – Casa das Artes Mário Elias – Mértola, 6 a 30 de abril de 2022

Todos conhecemos o importante papel do Doutor Cláudio Figueiredo Torres em Mértola. Muito se escreve e fala sobre o seu papel na história, na arqueologia, no património, na museologia e no desenvolvimento local aliando a preservação e valorização patrimonial ao conhecimento do território e das suas gentes. Muitos são também os estudos sobre o Projeto Mertola Vila Museu iniciado por si e por Serrão Martins. Merecidos têm sido os prémios, os reconhecimentos e as homenagens ao longo dos anos onde se destaca o Prémio Pessoa em 1991, a Medalha de Mérito Cultural atribuída pelo Ministério da Cultura, o Prémio Nacional Memória e Identidade pela Associação Nacional de Municípios com Centro Histórico e o Prémio “Personalidade na Área da Museologia” pela Associação Portuguesa de Museologia, em 2020, para referir os mais recentes.

As suas vivências e trabalho vão muito além de tudo o que tem dado à História e à Arqueologia, ao Campo Arqueológico de Mértola e ao Museu de Mértola, a Mértola… Esta Exposição e a publicação “Salazar 40 Anos?” é disso exemplo e merece uma visita atenta. Nada melhor que as suas próprias palavras para a explicar:

40 anos passado sobre outros tantos
Ainda estava próxima a passagem, fugaz mas intensa, pela Escola de Belas Artes do Porto e o desejo gorado de continuar um tirocínio apenas esboçado sob o olhar condescendente do mestre Júlio Resende.
Aina estava viva a memória do cárcere escuro da António Maria Cardoso onde, pela única abertura ao exterior, rasgada junto ao passeio, entrava a visão fugidia daqueles que, em passo apressado, seguiam para a vida. Podiam ser as sombras de um ouro mundo ausente reflectidas nas paredes da caverna de Platão.
Estava ainda dolorosamente presente a fuga pelo mar alto a caminho do desconhecido, onde descobri o primeiro e amargo sabor do medo e também os gestos simples da solidariedade.
As mãos ainda não tinham perdido o jeito de traçar as linhas e perfis das plantas e projetos de planeamento, de moldar os volumes impossíveis de povoados imaginados nas maquetes do Ministério do Urbanismo de Rabat em que, na altura (1961), o único arquitecto marroquino eta, naturalmente, o ministro.
Ainda estava presente a imagem daquelas composições de texturas coladas e de perfis de ferro soldado expostas numa primeira e única exposição na capital marroquina e cuja venda ajudou a sobreviver mais uns tempos.
Já em Bucareste, depressa chegou a desilusão e a impossibilidade de continuar um percurso formativo nas artes plásticas. Bastara uma passagem pela escola de Belas Artes onde o ambiente não era propriamente o mais propício, sobretudo comparado com a escola do Porto, onde em 1959 já pontificavam as formas poderosas de Henry Moore, onde esvoaçavam os mobile de Calder ou explodiam os volumes túrgidos de Germaine Richier. Aí, na capital romena, nesse início dos anos sessenta (1962), fui encontrar uns musculados e tristes construtores do socialismo atrás dos quais se perfilavam, ainda esbatidas, as figuras esquálidas da corte celestial de uma igreja proscrita e portante desejada. Era o discurso serôdio e deslavado de um realismo socialista que perdera qualquer qualidade estética ou vigor social.
Esta visão inesperada e deprimente levou-me ao abandono de qualquer veleidade de me dedicar às artes plásticas, arrastando-me para um outro caminho, decerta forma paralelo, que passou por um mergulho teórico no mundo bizantino da História da Arte.
Entretanto era o dia-a-dia das emissões na Rádio Bucareste. Um esforço, quantas vezes desesperado, de participar na batalha travada nas ruas do meu país, cada vez mais longínquo. A busca de informações para elaborar um bom comentário político, com a escuta da Emissora Nacional e a leitura requentada do Diário da Manhã que chegava com semanas de atraso. Além das notícias filtradas pelas agências internacionais, era esse comentário a marca da nossa presença, da nossa própria identidade, os escassos minutos em que julgávamos ser ouvidos no agitado meio estudantil de Lisboa ou nas picadas da guerra africana. Era o único espaço criativo daquela meia hora de emissão diária dedicada a Portugal, em que todo o tempo restante celebrava as sempre promissoras colheitas de trigo nas planícies do Danúbio e os êxitos do plano quinquenal nos complexos fabris de Ploiesti ou Galatzi.
Era neste ambiente, onde nunca morreu a vontade de moldar formas e associar alguns ricos, que a mão por vezes descaía para o papel, sugerindo figuras esquivas que procuravam sair da sombra.
Aproximava-se o ano de 1966, em que passavam quarenta anos do 28 de maio de 1926, e a ideia surgiu naturalmente… Era necessário participar mais directa e empenhadamente na denúncia de um regime que parecia eternizar-se no poder; que, apesar do desgaste e do isolamento internacional, continuava a enviar milhares de jovens para as matas africanas e a encarcerar todos aqueles que tinham ideias divergentes. Os desenhos começaram a sair, envolvidos por vezes num sorriso mordaz, ou apressadamente esquematizados num discurso incipiente.
Para organizar um texto justificativo e coerente recorri ao meu pai, já então exilado em Argel, onde colaborava com a Frente Patriótica de Libertação Nacional. Foi dele a ideia de selecionar dos discursos de Salazar algumas frase e afirmações que, de certa forma, enquadrassem os desenhos. Ainda chegaram a ser publicados alguns exemplares com a chancela das efémeras Edições Liberdade. Mas o esquecimento instalou.se, aconteceu o 25 de Abril e os anos passaram. Passaram outros 40 anos sobre a queda do ditador.
Foi entre o espólio de Flausino Torres, organizado pelo seu neto Paulo Torres Bento e depositado no Centro de Documentação 25 de Abril da Universidade de Coimbra, que este encontrou e resolveu ressuscitar o conjunto de desenhos que agora vêm à luz.
É difícil saber se estes antigos e desbotados desenhos merecem ser divulgados. Felizmente já não servem de arma, nem de arremesso nem de qualquer outra coisa. São apenas as marcas quase apagadas de uma geração que tentou participar e que por vezes conseguiu ser conivente com uma longa luta de resistência a um regime que parecia nunca mais acabar.

Mértola, 25 de Abril de 2008
Cláudio Torres
(In, Salazar 40 anos?, Desenhos de Cláudios Torres e colaboração de Flausino Torres, Porto Ed. Afrontamento, 2008, pp. 5-10).

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