Durante 2 meses recebemos a estagiária Valentina del Campo, estudante de Doutoramento na Universidade da Catania (Sicília/Itália). Abaixo as suas impressões sobre o tempo que passou com a equipa do Museu de Mértola-Cláudio Torres.
“Narrar raízes e preservar a memória: a vila de Mértola como cura para a alma
Desde 2020, juntamente com outros, tenho estado envolvida na realização do Ecomuseu do Simeto, na Sicília (Itália), um projeto ativo em 11 municípios do Vale do Rio Simeto, envolvendo cidades da província de Catania e Enna. Abordei o projeto deste ecomuseu para encontrar uma ponte entre a teoria sobre a educação patrimonial – tema da minha tese de mestrado em museologia – e a prática, para planear actividades educativas para as escolas destinadas a sensibilizar os alunos para a história do território, bem como para estarem atentos e sensíveis às questões da conservação, proteção e valorização do património cultural e ambiental.
Desde dezembro de 2021, o aprofundamento destas questões está a decorrer através da minha formação de doutoramento em "Processos Formativos, Modelos Teórico-Transformativos e Métodos de Investigação Aplicados ao Território" no Departamento de Educação da Universidade de Catânia. O curso de doutoramento carateriza-se pela investigação de novas práticas de cidadania relacionadas com processos de identidade e desenvolvimento local participativo, desenvolvimento sustentável do território, bem como a sua valorização social, cultural, económica e turística. A partir daqui, o sentido da minha investigação tornou-se ainda mais claro, alargando-se a uma compreensão profunda da necessidade de envolver não só as gerações mais jovens nos processos de educação patrimonial, mas também os adultos e as comunidades na perspetiva da educação ao longo da vida, que consiste em «qualquer atividade empreendida pelas pessoas de modo formal, não formal, informal, em várias fases da vida, a fim de melhorar conhecimentos, aptidões e competências, numa perspetiva pessoal, cívica, social e ocupacional».
O doutoramento inclui também um período de investigação no estrangeiro e, seguindo as sugestões da Professora Manuelina Maria Duarte Cândido, da Universidade de Liège, Bélgica, minha orientadora didática no estrangeiro, e da minha amiga e investigadora Giusy Pappalardo, da Universidade de Catânia, que teve a mesma experiência, escolhi o Departamento de Museologia da Universidade Lusófona de Lisboa, onde as questões da educação patrimonial são de grande importância, como destino para realizar o meu projeto de residência.
De Lisboa, onde fiz o meu primeiro período de residência, cheguei à vila de Mértola para passar os meses de maio e junho e aprofundar o processo museal que aqui se desenvolve há mais de 40 anos.
Para me receber, Lígia Rafael, coordenadora do Museu de Mértola – Cláudio Torres, uma referência fundamental no meu percurso aqui, acompanhou-me com paixão à descoberta dos vários núcleos museológicos da vila, mostrando-me com orgulho a importância do trabalho desenvolvido nesta área.
Mértola situa-se na região do Alentejo, a maior de Portugal, mas também uma das mais pobres e despovoadas, numa zona considerada marginal. É por isso que existe aqui um desejo de redenção; que é perseguida por meio da implementação de projetos de desenvolvimento sustentável fortemente centrados nos recursos culturais locais, tentando desenvolver novos paradigmas de interpretação territorial que ultrapassem o conceito de marginalidade e desenvolvimento.
Chego aqui vindo da azáfama de Lisboa e dou por mim a caminhar por ruelas silenciosas e com história espalhada em cada esquina. A paz é tanta que até as cegonhas escolheram este sítio para nidificar tranquilamente. Passeando com o nariz virado para o céu, até no telhado do cine-teatro municipal se podem ver estas belas criaturas.
Pelas ruas do núcleo mais antigo da vila de Mértola, com as suas casas caiadas de branco e a sua luz ofuscante, contempla-se a beleza selvagem do Rio Guadiana que, no passado, foi um importante entreposto fluvial de comércio para toda a Península. É uma vila de origem islâmica e essas raízes, essas memórias, são importantes para a comunidade, tanto em termos arqueológicos como artísticos.
Foram dois meses intensos, uma verdadeira viagem através dos séculos e dos povos que aqui deixaram o seu rasto. Mais de 40 anos depois de tudo ter começado, já em 1978, continua bem patente a necessidade que moveu os pioneiros deste processo museal de recuperar e salvaguardar o património arqueológico deste território e a vontade de contar e recontar a sua história também através dos antigos têxteis produzidos no tear. Afinal, o que são os tecidos senão uma interseção de fios combinados cromaticamente e materialmente? Mas são também uma metáfora para esse cruzamento de experiências, ideias e sonhos que cada um de nós traz consigo, colocando-os ao serviço de uma comunidade para dar vida a projetos que falam de cada um e se tornam património de todos. E, tal como os fios de uma manta trabalhada num tear com 300 anos, unidos, entrelaçados e com o mesmo desejo de redenção de então, prosseguem um trabalho de enriquecimento da memória coletiva.
Nesta pequena aldeia alentejana, há uma perfeita integração entre passado e presente, tradição e inovação, de tal forma que é um verdadeiro museu a céu aberto, pois possui um património que não se conserva apenas nos núcleos museológicos, mas que se estende às casas, às ruas, ao traçado urbano, aos vestígios do quotidiano e às memórias de saberes antigos.
Também aqui existe trabalho dedicado ao património imaterial: estou a pensar na beleza do Cante Alentejano – inscrito em 2014 na Lista do Património Cultural Imaterial da Humanidade – que a população ainda pratica com orgulho, como uma memória imperecível para as gerações futuras.
Anciãos e jovens cantam em coro o que sempre foi património desta terra: a vida rural, a natureza, o amor, a religião, mas também, inevitavelmente, as mudanças sociais e culturais da sociedade contemporânea.
O Cante personifica esse forte sentimento de identidade e pertença das comunidades alentejanas e contribui para a coesão social: isto tornou-se evidente aos meus olhos quando assisti ao “Grupo Comunitário de Artes Performativas” no Cine-Teatro Marques Duque. Neste local, guiados pelo som vibrante do acordeão de Celina da Piedade e do violino de Ana Santos, indivíduos de diferentes origens foram unidos pela linguagem da música… tal como a linguagem museológica, há 45 anos, uniu o grupo de investigadores à comunidade autóctone.
E a música foi também a protagonista de outro evento, no Largo da Igreja Matriz, onde se apresentarm seis grupos corais das zonas circundantes de Mértola, no âmbito do "Festival Futurama". Para além de uma canção tradicional do seu próprio repertório, interpretaram um novo tema escrito para eles por outros tantos autores portugueses. Uma maisvalia para mim nessa noite festiva foi a Guilhermina Bento, uma apaixonada cantora e intérprete do cante alentejano, que, com o ardor que a distingue, me explicou passo a passo o porquê das roupas e objectos tradicionais usados por alguns dos cantadores, bem como o significado de algumas palavras que me são difíceis de ler por não conhecer bem o português. Nestas mulheres e nestes homens está concentrada a alma do território e o orgulho da sua identidade.
Os meus dias mais intensos e agitados em Mértola foram durante o festival islâmico, que só se realiza aqui nos anos ímpares desde 2001. Quis dar o meu contributo para o trabalho da equipa do Museu de Mértola que tão calorosamente me acolheu, prestando serviço na sala de exposições temporárias do Castelo para a exposição programada para os dias do festival: “Do Artesanato ao Design”- Loulé Criativo, Associação Passa ao Futuro e Via Criativa, onde, mais uma vez, o foco foi o cruzamento do mundo da tradição com o mundo da inovação com a combinação de técnicas tradicionais e design moderno. Pude ouvir os comentários dos visitantes mais atentos e interagir com eles sobre a importância de nunca descurar «de onde vimos e quem fomos no passado, mas projetarmo-nos no futuro com um olhar curioso e atento».
Na 12ª edição deste grande evento, que atrai turistas de Portugal, Espanha, França, Inglaterra, Itália e outros países, pude sentir na pele o que significa para o Alentejo a importância do passado islâmico. No núcleo de Arte Islâmica estão expostos alguns vestígios monumentais da antiga Martulah islâmica, recriada como se fosse uma casa típica desse período histórico, com um painel e uma cúpula no centro do espaço museológico, representando o encontro entre o mundo urbano e o mundo rural, entre a tradição e a inovação. E é precisamente do cruzamento entre a tradição e a inovação que, durante os dias do festival, surgiu uma mistura de música, dança, canções e espectáculos de vários tipos, misturando habilmente culturas aparentemente distantes mas semelhantes. Uma celebração da diversidade cultural que testemunha o rico passado histórico de Mértola.
Mértola é uma pequena vila extremamente animada do ponto de vista cultural e, curiosamente, oferece acesso aos núcleos museológicos – bem como a eventos, festivais, espetáculos e mostras – de forma totalmente gratuita, em virtude desse processo de democratização da cultura orientado para a partilha, a participação e a inclusão.
Nos dois meses da minha estadia, pude participar em muitos eventos que me permitiram uma verdadeira imersão na vida do lugar e pude apreciar os sabores da comida. Já sei que vou sentir muita falta da bifana do Café Guadiana e do cafezinho do 'bar secreto'. Tanto quanto (e mais do que) a comida, vou sentir falta das pessoas que enriqueceram a minha estadia no Alentejo durante estes meses: a Lígia, uma pessoa atenta às necessidades dos outros e uma investigadora incansável, depois a Rute e a Nélia que cuidaram de mim como se fossem irmãs mais velhas.
Como poderia esquecer a minha companheira de aventuras e de quarto Valeria Martin Silva, estudante de Doutoramento na Universidade de Huelva, o abraço do Cláudio Torres, a simpatia e habilidade do Fernando com as suas explicações em italiano durante as visitas, o calor humano da Guilhermina, a amabilidade da Mafalda e do Pedro, as mulheres da Oficina de Tecelagem e todas as pessoas que fazem parte da equipa do Museu e do Campo Arqueológico de Mértola, o Virgílio Lopes, a Susana Gómez, a Clara Rodrigues e muitos outros que me desculpem se não os consigo nomear um a um!
Vou sentir falta da simpatia dos habitantes locais que, embora um pouco tímidos no início, depois se fundem como só nós, sulistas, sabemos fazer.
Estou grata a todos por este acolhimento. Agradeço aos representantes da Câmara Municipal que me acolheram quando aqui cheguei.
Parto agora com a esperança de que toda a comunidade se aperceba mais fortemente do valor da sua história e apoie mais o trabalho destes homens e mulheres dedicados à preservação da memória; parto com a certeza de que enriqueci a minha vida pessoal e profissional, mas também o meu trabalho de investigação, que agora continuará noutros locais, fazendo como o rio: «[…] segue o seu curso e, seja o que for que se lhe atravesse no caminho, vence-o e continua a avançar até desaguar no mar».
Valentina Del Campo, junho de 2023